Toda vez que uma catástrofe ou tragédia de grande proporção atinge o
mundo retorna à blogosfera a questão do mal e do sofrimento dos
inocentes em um mundo governado por um Deus bom e Todo-Poderoso. É o
caso do furacão Sandy, que nestes dias tem causado uma enorme destruição
e a morte de dezenas de pessoas nos Estados Unidos e outros países.
De longa data o mal que existe no mundo vem sendo usado como uma
tentativa de se provar de que Deus não existe, ou se existe, não é bom. E
se for bom, não é todo-poderoso - esta última hipótese defendida pelo
teísmo aberto.
"Onde estava Deus quando estas tragédias aconteceram?" é a pergunta de
pessoas revoltadas com o fato de que centenas de pessoas boas,
desprevenidas, cidadãos de bem, foram apanhados numa tragédia e morreram
de forma terrível, deixando para trás famílias, filhos, entes queridos.
Eu entendo a preocupação com o dilema moral que tragédias representam
quando vistas a partir do conceito cristão histórico e tradicional de
Deus. Se Deus é pessoal, soberano, todo-poderoso, onisciente, amoroso e
bom, como então podemos explicar a ocorrência das tragédias,
calamidades, doenças, sofrimentos, que atingem bons e maus ao mesmo
tempo?
Creio que qualquer tentativa que um cristão que crê que a Bíblia é a
Palavra de Deus faça para entender as tragédias, desastres, catástrofes e
outros males que sobrevêm à humanidade, não pode deixar de levar em
consideração dois componentes da revelação bíblica, que são:
- A realidade da queda moral e espiritual do homem
- O caráter santo e justo de Deus.
Lemos em Gênesis 1—3 que Deus criou o homem, macho e fêmea, à sua imagem
e semelhança, e que os colocou no jardim do Éden, com o mandamento para
que não comessem do fruto proibido. O texto relata como eles
desobedeceram a Deus, seduzidos pela astúcia e tentação de Satanás, e
decaíram assim do estado de inocência, retidão e pureza em que haviam
sido criados. As conseqüências, além da queda daquela retidão com que
haviam sido criados, foram a separação de Deus, a perda da comunhão com
ele, e a corrupção por inteiro de suas faculdades, como vontade,
entendimento, emoções, consciência, arbítrio. Pior de tudo, ficaram
sujeitos à morte, tanto espiritual, que consiste na separação de Deus,
como a física e a eterna, esta última sendo a separação de Deus por toda
a eternidade.
Este fato, que chamamos de “queda,” afetou não somente a
Adão e Eva, mas trouxe estas conseqüências terríveis a toda a sua
descendência, isto é, à humanidade que deles procede, pois eles eram o
tronco e a cabeça da raça humana. Em outras palavras, a culpa
deles foi imputada por Deus aos seus filhos, e a corrupção de sua
natureza foi transmitida por geração ordinária a todos os seus
descendentes.
Desde cedo na história da Igreja cristã esta doutrina, que tem sido
chamada de “pecado original”, foi questionada por gente como Pelágio,
que afirmava que o pecado de Adão e Eva afetou somente a eles mesmos, e
que seus filhos nasciam isentos, neutros, sem pecado, e sem culpa e sem
corrupção inata. Tal ideia foi habilmente rechaçada por homens como
Agostinho, Lutero, Calvino e muitos outros, que demonstraram claramente
que o ensino bíblico é o que chamamos de depravação total e transmitida, culpa imputada e corrupção herdada.
As conseqüências práticas para nós hoje são terríveis. Por causa desta
corrupção inata, com a qual já nascemos, somos totalmente indispostos
para com as coisas de Deus; somos, por natureza, inimigos de Deus e,
portanto, filhos da ira. É desta natureza corrompida que procedem os
nossos pecados, as nossas transgressões, as desobediências, as revoltas
contra Deus e sua Palavra.
Agora chegamos no ponto crucial e mais relevante para nosso assunto.
Entendo que a Bíblia deixa claro que os nossos pecados, tanto o original
quanto os pecados atuais que cometemos, por serem transgressões da lei
de Deus, nos tornam culpados e portanto sujeitos à ira justa de Deus,
à sua justiça retributiva, pela qual ele trata o pecador de acordo com o
que ele merece. Ou seja, a humanidade inteira, sem exceção – visto que
não há um único justo, um único que seja inocente e sem pecado – está
sujeita ao justo castigo de Deus, o que inclui – atenção! – a morte, as
misérias espirituais, temporais (onde se enquadram as tragédias, as
calamidades, os desastres, as doenças, o sofrimento) e as misérias
espirituais (que a Bíblia chama de morte eterna, inferno, lago de fogo,
etc.).
A Bíblia revela com muita clareza, e sem a menor preocupação de deixar
Deus sujeito à crítica de ser cruel, déspota e injusto, que ele mesmo é
quem determinou tragédias e calamidades sobre a raça humana, como parte
das misérias temporais causadas pelo pecado original e as transgressões
atuais. Isto, é claro, se você acredita realmente que a Bíblia é a
Palavra de Deus, e não uma coleção de idéias, lendas, sagas, mitos e
estórias politicamente motivadas e destinadas a justificar seus autores.
De acordo com a Bíblia:
- Foi Deus quem condenou a raça humana à morte no jardim (Gn 2.17; 3.19; Hb 9.27).
- Foi ele quem determinou a catástrofe do dilúvio, que aniquilou a raça humana com exceção da família de Noé (Gn 6.17; Mt 24.39; 2Pe 2.5).
- Foi ele quem destruiu Sodoma, Gomorra e mais várias cidades da região, com fogo caído do céu (Gn 19.24-25).
- Foi ele quem levantou e enviou os caldeus contra a nação de Israel e demais nações ao redor do Mediterrâneo, os quais mataram mulheres, velhos, crianças e fizeram prisioneiros de guerra (Dt 28.49-52; Hab 1.6-11).
- Foi ele quem levantou e enviou contra Israel povos vizinhos para saquear, matar e fazer prisioneiros (2Re 24.2; 2Cr 36.17; Jr 1.15-16).
- Foi ele quem ameaçou Israel com doenças, pestes, fomes, carestia, seca, pragas caso se desviassem dos seus caminhos (Dt 28).
- Foi ele quem enviou as dez pragas contra o Egito, ferindo, matando e trazendo sofrimento a milhares de egípcios, inclusive matando os seus primogênitos (Ex 9.13-14).
- Foi o próprio Jesus quem revelou a João o envio de catástrofes futuras sobre a raça humana, como castigos de Deus, próximo da vinda do Senhor, conforme o livro de Apocalipse, tais como guerras, fomes, pestes, pragas, doenças (Apocalipse 6—9), entre outros.
- Foi o próprio Jesus quem profetizou a chegada de guerras, fomes, terremotos, epidemias (Lc 21.9-11) e a destruição de Jerusalém, que ele chamou de “dias de vingança” de Deus contra o povo que matou o seu Filho, nos quais até mesmo as grávidas haveriam de sofrer (Lc 21.20-26).
- E por fim, Deus já decretou a catástrofe final, a destruição do mundo presente por meio do fogo, no dia do juízo final (2Pe 3.7; 10-12).
Isto não significa, na Bíblia, que o sofrimento das pessoas é sempre
causado por uma culpa individual e específica. Há casos, sim, em que as
pessoas foram castigadas com sofrimentos temporais em virtude de pecados
específicos que cometeram, como por exemplo o rei Uzias que foi ferido
de lepra por causa de seu pecado (2Cr 26.19; cf. também o caso de Miriã,
Nm 12.10). O rei Davi perdeu um filho por causa de seu adultério (2Sm
12.14). Mas, em muitos outros casos, as tragédias, catástrofes, doenças e
sofrimentos não se devem a um pecado específico, mas fazem parte das
misérias temporais que sobrevêm à toda a raça humana por conta do estado
de pecado e culpa em geral em que todos nós nos encontramos. Deus traz
estas misérias e castigos para despertar a raça humana, para provocar o
arrependimento, para refrear o pecado do homem, para incutir-lhe temor
de Deus, para desapegar o homem das coisas desta vida e levá-lo a
refletir sobre as coisas vindouras. Veja, por exemplo, a reflexão
atribuída a Moisés no Salmo 90, provavelmente escrito durante os 40 anos
de peregrinação no deserto. Veja frases como estas:
Tu reduzes o homem ao pó e dizes: Tornai, filhos dos homens... Tu os
arrastas na torrente, são como um sono, como a relva que floresce de
madrugada; de madrugada, viceja e floresce; à tarde, murcha e seca. Pois
somos consumidos pela tua ira e pelo teu furor, conturbados. Diante de
ti puseste as nossas iniqüidades e, sob a luz do teu rosto, os nossos
pecados ocultos. Pois todos os nossos dias se passam na tua ira;
acabam-se os nossos anos como um breve pensamento...
Não devemos pensar que aquelas pessoas que ficam doentes, passam por
tragédias, morrem em catástrofes eram mais pecadoras do que as demais ou
que cometeram determinados pecados que lhes acarretou tal castigo. Foi o
próprio Jesus quem ensinou isto quando lhe falaram do massacre dos
galileus cometido por Pilatos e a tragédia da queda da torre de Siloé
que matou dezoito (Lc 13.1-5). Ele ensinou a mesma coisa no caso do cego
relatado em João 9.3-4. Os seus discípulos levantaram o problema do
sofrimento do cego a partir de um conceito individualista de culpa,
ponto que foi rejeitado por Jesus. A cegueira dele não se deveu a um
pecado específico, quer dele, quer de seus pais. As pessoas nascem
cegas, deformadas, morrem em tragédias e acidentes, perdem tudo que têm
em catástrofes, não necessariamente porque são mais pecadoras do que as
demais, mas porque somos todos pecadores, culpados, e sujeitos às
misérias, castigos e males aqui neste mundo.
No caso do cego, Jesus disse que ele nascera assim “para que se
manifestem nele as obras de Deus” (Jo 9.3). Sofrimento, calamidades,
etc., não são somente um prelúdio do julgamento eterno de Deus; há
também um tipo de sofrimento no qual Deus é glorificado por meio de
Cristo em sua graça, e assim se torna, portanto, um exemplo e um
prelúdio da salvação eterna. As tragédias servem para levar as pessoas a
refletir sobre a temporalidade e fragilidade da vida, e para levá-las a
refletir nas coisas espirituais e eternas. Muitos têm encontrado a Deus
no caminho do sofrimento.
O que eu quero dizer é que, diante das tragédias e acidentes devemos
nos lembrar que eles ocorrem como parte das misérias e castigos
temporais resultantes das nossas culpas, de nossos pecados, como raça
pecadora que somos. Poderia ser eu que estava entre as vítimas do
furacão Sandy. Ou, alguém muito melhor e mais reto diante de Deus. Ainda
assim, Deus não teria cometido qualquer injustiça, ainda que todas as
vítimas fossem os melhores homens e mulheres que já pisaram a face da
terra. Pois mesmo estes são pecadores. Não existem inocentes diante de
Deus, Bonfim. Pensemos nisto, antes de ficarmos indignados contra Deus
diante do sofrimento humano.
Por último, preciso deixar claro duas coisas.
Primeira, que nada do que eu disse acima me impede de chorar com os que
choram, e sofrer com os que sofrem. Somos membros da mesma raça, e
quando um sofre, sofremos com ele.
Segunda, é preciso reconhecer que a revelação bíblica é suficiente, mas
não exaustiva. Não temos todas as respostas para todas as perguntas que
se levantam quando uma tragédia acontece. Não conhecemos a vida das
vítimas e nem os propósitos maiores e finais de Deus com aquela
tragédia. Só a eternidade o revelará. Temos que conviver com a falta
destas respostas neste lado da eternidade.
Mas, é preferível isto a aceitar respostas que venham a negar o ensino
claro da Bíblia sobre Deus, como por exemplo, especular que ele não é
soberano e nem onisciente e onipotente. Posso não saber os motivos
específicos, mas consola-me saber que Deus é justo, bom e verdadeiro, e
que todas as suas obras são perfeitas e retas, e que nele não há engano.
[Este post foi baseado num outro post da minha autoria aqui no blog intitulado Carta a Bonfim: Deus e as Tragédias]
Fonte: http://tempora-mores.blogspot.com.br/